As óticas espiritual e sincrética, que sempre permearam e foram decisivas para os rumos de Bira, conduzirão o filme. Católico, ele é filho de mãe de santo, a Mãe Conceição. E foi ela, umbandista que teve a cabeça feita no candomblé da lendária Mãe Menininha dos Gantóis, que incentivou Bira a deixar os dois empregos públicos que tinha para se dedicar ao samba.
— Ela me disse para largar tudo e cuidar do Cacique e do Fundo de Quintal. Aqui (o Cacique) é uma missão que tenho espiritual. A outra é o carnaval, que é alegre, de divertir as pessoas — afirma Bira.
O Cacique nasceu em 20 de janeiro de 1962, dia de São Sebastião, santo que todos os anos é lembrado com festa no bloco. E logo em seus primeiros anos começou a rivalizar com o gigante da época, o Bafo da Onça. Já a escolha de sua sede teve influência de Mãe Menininha. Ela disse que deveria ser escolhido um lugar com árvores, para que ali dessem frutos. E foi num terreno da Rua Uranos 1.326, que não fica em Ramos, mas na vizinha Olaria, que foi encontrado o local ideal.
Lá, numa sala restrita a pouquíssimos, fica uma imagem de São Sebastião. E no pátio até hoje estão duas tamarineiras que Bira afirma realizar desejos de quem faz pedidos aos seus pés. E ele tem muitas testemunhas do que diz. Um deles o próprio diretor Maruche.
— Em 2007, fiz o projeto “Coisa de Jorge”, um show na Praia de Copacabana que tinha o sincretismo e a fé como fundo. Na pesquisa, deparei com um texto do Bira, sobre a influência espiritual no Cacique. O texto ficou três anos em cima da minha mesa. Pedi ao Jorge Aragão para que me apresentasse o Bira. E no primeiro dia que vim à quadra do bloco, aconteceu algo incrível. Nossos santos, o meu e do Bira, bateram. A ao tocar a tamarineira, fiquei impressionado com a energia que senti — lembra Maruche, enquanto Bira lembrava que o diretor, nessa hora, começou a tremer. — O Cacique é uma janela espiritual aberta, que transita entre o sagrado e o profano — continua o diretor.
Provas de que realmente esta janela está aberta não faltam. Na Rio + 20, Bira conta que chefes indígenas de todo o Brasil pediram para conhecer o Cacique do subúrbio da Leopoldina. E num ritual indígena, instalaram junto a uma das tamarineiras dois totens sagrados. Já no último carnaval, o arcebispo do Rio, Dom Orani Tempesta, abençoou o Cacique na concentração de seu desfile. Logo depois, um carro preto do consulado americano parou perto do bloco. Quando foram ver o que acontecia, era uma xamã indígena dos Estados Unidos, que pediu autorização para fazer um ritual em plena avenida.
— Ele trouxe tambores. E fez cantos dele em cima do carro. E o povo todo o acompanhava, mesmo sem entender bem o que acontecia — lembra o presidente do Cacique.
Essas são só algumas de tantas histórias reais que superam qualquer ficção ou, como diz Maruche, são planejadas pelo “mundo espiritual”, que serão contadas no filme, que tem roteiro de Adriana Falcão, de “O Auto do Compadecida” e “Se Eu Fosse Você”. O filme começa a ser gravado em fevereiro de 2014, e deve avançar pelo carnaval do ano que vem. Até lá, um desafio: escolher o ator que vai interpretar Bira.
— Vai ser difícil encontrar alguém que personifique todo o carisma dele — afirma Maruche.
Outros tantos nomes que já passaram pelo bloco também serão lembrados. Mas, diz o diretor, não necessariamente serão identificados como tais. O papel do Cacique na revitalização do samba, aliás, será outro ponto central do filme. A partir dos anos 1970 e 1980, o bloco virou reduto dos sambistas.
Para Maruche, o Cacique representou para o samba o que a Tropicália significou para a MPB. Importância que já foi retratada em teses e livros. Como o livro de Carlos Alberto Messeder, “Cacique de Ramos, uma história que deu samba”, que o pesquisador agora tem planos de republicar, repaginado.
O livro, publicado em 2000, nasceu a partir de uma pesquisa para uma tese de doutorado na década de 1980. Na época, Messeder foi contratado como antropólogo, pela Fundação Pró-Memória para levantar subsídios para o tombamento da quadra do bloco. Acabou sendo convencido de que não era o tombamento o mais importante naquela hora, mas a regularização da situação do terreno.
— E conseguimos o que eles queriam. E eu me integrei ao Cacique. Participei, fui às feijoadas, desfilei no bloco, entrevistei a mãe e o pai do Bira — lembra Messeder, destacando o papel do Cacique para o samba. — O Cacique conseguiu atrair gente de todos os lados da cidade. Vários artistas frequentaram o bloco. O pagode às quartas-feiras atraía pessoas como Zeca Pagodinho e Jovelina Pérola Negra. Foi um celeiro de compositores, que reinventou a tradição. A partir do pagode do Cacique ocorreu a retomada do samba. E também os blocos e o carnaval de rua renasceram — ressalta o pesquisador, que agora busca patrocínio para reeditar o livro, com novas entrevistas.
Por Rafael Galdo (Email · Facebook · Twitter)
Foto: Marcio Lopes
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